Bebeco Rocha

Quase tudo que eu sei
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“Não bate nesse prato!”, interrompeu em tom não muito amigável enquanto mexia no jack da guitarra, contribuindo para o ruído natural que tinham também enquanto não tocavam. A próxima da lista era de longe a preferida do batera. Por ele, a música nem entraria no set. Sempre fazia a sugestão de não passá-la no ensaio. Fácil demais, reta demais, repetitiva demais. Mas sempre entrou. Na sua defesa e no canto direito do quarto havia um guitarrista que dividia a sua atenção entre referências claras e estranhas da virada dos anos 80 pros 90 e alguns cabos que sempre em momentos delicados davam mal contato, além do vocalista com pressa pra sair do ensaio e fazer alguma “coisa útil”, o que lhe tirava o tempo para decorar uma nova letra. O baixista era de boa, até porque não sabia bem o que estava fazendo ali. “Tá bom. Mas coloca de primeira pra se livrar logo”.

Duas tardinhas e meia depois, estavam em cima de um tablado de madeira sustentado por caixas de cerveja a uns 30 centímetros do chão mostrando o seu ruído para outras pessoas. Nem pouca, nem muita gente, que também não se olhavam muito, um pouco por desinteresse e outro pelo breu que era aquele clube de 20 e poucos metros quadrados. Habitando o palco, uma bateria “pra quem estava começando”, vestida de dois pratos tortos, estridentes e de vibração curta, um baixista com sonoridade clássica de um baixo meia linha com um cubo com potência suficiente e timbre insuficiente pra algo muito diferente daquele som, uma guitarra normal modulada por uma pedaleira normal com um amplificador médio ruim e com um dos cabos suspeitos, por fim um retorno na frente de um pedestal com microfone.

Segurando uma nota de dois reais na mão direita com o braço apoiado no balcão do bar, e preocupado com a quantidade de público, um amigo da banda disparava “me dá uma ceva” e a levaria imediatamente pro vocalista que só então daria um olhar afirmativo pras quatro batidas de baquetas. E a música começou. O baixista tinha confiança em excesso e notas em falta. Muita pose, pouca atividade. Ainda assim, a música contribuía: apenas três notas por fazer ao longo dos quatro minutos e pouco que percorria nos aparelhos de vinil da época. A tentativa de conquistar o máximo de garotas com sua figura se frustrou e passado o primeiro refrão a palma da mão já doía e o andamento se perdia. No lugar do baixista, agora havia um poste de nervosismo. Para confirmar isso, amigos, colegas, paixões, esquemas e mais um tanto de errantes noturnos e caçadores de noitadas envoltos naquele ambiente esfumaçado a fim de julgar ou se divertir com o que sairia do palco. Todos poderiam ser qualquer um ali, no passado, presente ou futuro. E o show recém havia começado.

O guitarrista chamava atenção por aparentar anos à frente dos outros embora a mesma cara sem barba. Enquanto olhava o baixista congelado e o baterista oscilando o tempo em função do pouco ensaio, dominava o espaço sonoro através de suas mãos. Flutuava nas seis cordas com a certeza de onde poderia ir e o que poderia fazer. Bastava deixar rolar. Tinha autonomia para olhar pra onde quisesse. E assim o fez, e entre uma revisada no braço da guitarra e outras no público, se perguntava onde ela estaria. A sua música crescia bem, era a referência dos quatro com sobras. Segurava as pontas e tendia a fazer o resto se encaixar. Mas naquela noite ele realmente estava mais preocupado no ingresso número 47 de tênis baixo, calça jeans e blusa branca.

O vocalista poderia ser brilhante numa canção, esquecer toda a letra da próxima, não achar o tom da seguinte e encarnar a alma de um frontman na última. Era uma loteria. Em todos outros três shows que fizeram até ali, todos ele foi alguém diferente. Não sabia o que se esperar. Na noite em questão, chegou por último e atrasado, subiu ao palco meio embriagado, meio atordoado, e com a preocupação de abrir a lata e tomar um gole a tempo de respirar e começar a cantar. Um não quis perguntar, o outro deu uma mijada tímida embora necessária e o último deixava um cabo extra à vista com ares de saber tudo que rolava. Passaram-se os compassos da introdução e a voz saiu a tempo dos olhos se fecharem, as duas mãos no microfone e com certo feeling ainda não interpretado disposto palavra por palavra molhadas pelo gole semi-gelado de uma ceva meia boca.

Foi-se a primeira estrofe com algumas pequenas oscilações, enquanto o baterista pensava ofegante: “continua, continua…”. O público passou de alheio para interessado – exceto alguns que, assim como o baixista, não sabiam direito porque estavam ali – enquanto vinha um refrão forte, surpreendentemente envolvente. Ainda não havia direcionado sua atenção pra galera, e o fez apenas no meio da segunda estrofe, quando entraram as duas frases que antecediam a parte mais significativa da letra. E a dona do ingresso 47 surgia atingida da metade da perna pra baixo pela luz de um dos oito canhões que vinham da estrutura do palco e também serviam para clarear a sombra na sua expressão séria enquanto, na única coluna de som no lado direito da banda, eram exclamados os versos mais poderosos daquela canção.

Havia algumas flores na pele e ao redor daquele pequeno universo. Não era única a espera pela primeira vez ou pela última chance. As evidências, que se misturavam com um breu único, se mostravam ou através dos decibéis predominantes das vibrações de meia dúzia de cordas que corriam elétricas pelo ambiente em forma de apelo ou pelas palavras de outra pessoa reapropriadas ao momento sendo expostas pelo microfone ao mesmo tempo em que um rosto claro no ambiente escuro que recebeu um pouco de sombra mostrava o feedback certeiro para tudo vivido ali. E eu dizia ainda é cedo.