Bebeco Rocha

Polaroid verbal – retratos do frio
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 ppci - resfria - popular


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Do outro lado da cidade, o dia não tinha sido tão leve ao corpo. Movimentou-se desde a metade da manhã em quase constância, e nas horas mais intensas corria de um lado a outro atendendo a situações e pessoas estranhas e momentâneas que passavam por ali e não deixavam nenhum rastro de raiz senão o deleite de uma refeição e alguma memória recente a ser descartada na próxima esquina. De certa forma, se blindava ao que era agressivo ao seu bem estar com gentileza.

No fim da tarde, despediu-se do resto do grupo com algumas conversas aleatórias sobre o tempo ruim, o que fazer do futuro e algumas colocações pontuais que mais mostravam empatia e sensibilidade com o que estava ao seu redor enquanto mixava pensamentos de cores e imagens que poderiam se externar num esboço real de sua próxima tela.

No caminho de casa, a perna pesava mais que a catraca da bicicleta com a cesta carregada de compras habituais que apontava o norte de seu caminho. Vez ou outra, quando a estrada ficava mais solitária, levantava a cabeça para sentir a chuva fina misturada com o vento gelado e filtrava pensamentos amistosos a com relação à vida, os momentos e pessoas que cruzavam por ela. Seu olhar apontava tímido mas soberano: haviam coisas maiores que crises.

Depois de um intervalo de tempo ao redor de metade de uma hora, ao chegar em casa, entre um tropeço e rir de si mesmo, reparou a pequena coleção de vasos esperando dias melhores para florescerem e saírem do sazonal tom musgo e marrom que se encontravam, enquanto cadeava a sua bike e reorganizava suas coisas.

Entre um suspiro e outro, divagava sobre o cheiro e tom da refeição tardia e feita com cuidado, misto de afeto com sensibilidade, para repor energias e sabor ao corpo e, enfim, tomar um banho quente, deitar na cama rodeada de artigos que soavam de décadas passadas e combinavam com seu quarto o deixando com ares de estúdio.  Não era só o sorriso escondido daquele rosto que evidenciava, assim como todo o que a circundava: o valor das coisas é maior do que seu preço.

Já envolta de cobertores e aquecida, o pensamento sorriu por instantes, enquanto tudo bradava para fazê-lo em oposto. Era mais doce, embora vulnerável, aos preceitos, à raiva e rancor espraiados. À espera do sono, se perguntou o porquê de tudo ser tão egoísta. Serena e preguiçosamente, uma pequena nuvem de ideias se formou no alto de seus pensamentos que aos poucos se esvaneciam e concluíam com a verbalização daquela pequena retrospectiva diária surgida como um broto do subconsciente: apesar de você amanhã há de ser outro dia. As respostas não chegaram e nem eram necessárias.

 

Ilustração: Gabrielle Borges

 

Guilherme Motta