Três partes negras iguais – Maurício Rosa de Souza

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Foto: divulgação


 

Foto: divulgação

 

O escritor sepeense Maurício Rosa de Souza apresenta nesta terça-feira, 2, uma crônica sobre o Black Out Tuesday, um protesto no mundo todo com relação a morte do Floyd semana passada. Com base nisso, Souza escreveu uma crônica citando os aspectos que nada evoluíram com relação ao racismo.

 

O Negro Antigo.

Eu estava no colo da minha mãe quando colocaram uma corrente no pescoço dela, deram-lhe um novo nome e a jogaram num barco enorme cheio de pessoas parecidas conosco. Não lembro que idade eu tinha, mas, graças a ela, suportei a viagem. A jornada foi longa, cheia de gritos, odores e mortes. Dias antes de embarcarmos, lembro-me de minha mãe dizendo que Deus era bom e que ele, onde estivesse, estava zelando por todas as pessoas na Terra. Confesso que nada disso fez sentido quando vi metade da embarcação ser jogada no mar, muitos deles ainda estavam vivos. Chegando num lugar chamado Brasil, minha mãe teve sorte, segundo ela, por ter sido comprada para servir dentro da fazenda. Eu cresci assistindo abusos sexuais, verbais e agressões físicas de todos os tipos. Aos 11 anos de idade deram-me um material para trabalhar na colheita: enxada, pá e outras ferramentas. Virando terra, plantando e colhendo, eu construí uma família. Fiquei triste quando vi meu filho, que cuidava dos cavalos do capataz, ser levado ao tronco por não ajustar bem uma das ferraduras. Ele estava seguindo o mesmo rumo que eu. E tudo piorou quando o venderam como um saco de batatas, fazendo com que eu nunca mais o visse. Morri na lavoura, com problemas cardíacos e pulmonares. “Meu fuminho me acalmava, mas também me matava”. Com o corpo caído sob um sol de quarenta graus, eu vi um brilho além, uma luz extra que me confortou, como quando sentia medo, após ver minha mãe ser agredida por não lavar os pratos corretamente. Talvez fosse Deus, mas eu preferi acreditar que fosse minha mãe. Ela, pelo menos, dava às caras.

 

Negro Médio.

Nasci e cresci no meio disso tudo. A primeira imagem que tenho é de meu pai no tronco sendo punido por roubar uma galinha. Galinha essa que jantamos na noite anterior. Há tempos não víamos carne. Estávamos ficando ainda mais fracos comendo somente folhas e alguns cereais. Lembro-me claramente do dia que assinaram a tal Lei Áurea. Muitos de nós ficamos extasiados e cheios de planos, mas a realidade foi cruel. Eu tinha quatro filhos e uma esposa grávida. Saímos da fazenda, cheios de sacos de roupas e esperança nos olhos. Quanta inocência. Viramos ambulantes famintos, contando migalhas e mentindo todo dia para os nossos filhos. Por incrível que pareça, eu preferia estar na fazenda. Nossa liberdade era pior que nossa prisão. Eu queria saber o que aquela Princesa tinha na cabeça, ao pensar que quase 400 anos seriam ratificados em poucas décadas. Pouco mais de um ano depois, o Brasil virou República, o Imperador foi embora, um monte de gente ficou dizendo um monte de coisas e eu continuei vagando. Por causa da fome, doei meus filhos e minha esposa sumiu achando que a culpa era minha. Morri com o lamento: “aboliram a escravidão, mas não o preconceito das pessoas”. Ironicamente, preferia ter morrido na lavoura a numa rua qualquer, com pessoas passando por cima do meu corpo achando que eu dormia. Uma verdadeira humilhação pós-morte.

 

Negro Moderno.

Nasci e cresci no meio disso tudo. Minha mãe é diarista, meu pai garçom. A vida toda pagando aluguel, água, luz e todas as despesas para que eu pudesse acessar meios de conhecimento e ter a formação que eles não conseguiram ter. Vindo de família pobre, sempre corri atrás de tudo que quis e por isso paguei preços dolorosos pela minha curiosidade. Eu questionava meus pais por não terem estudado mais e assim poder me dar coisas que meus colegas de escola tinham, mas eu não. Eles sempre diziam que vida de negro não é fácil. Ambos tiveram que abandonar cedo a escola para entrar no mercado de trabalho. Segundo eles, a cor da nossa pele reduzia a porcentagem de acesso a empregos, escolas e universidades. 132 anos depois da abolição, pouca coisa mudou. Eu ainda sofro para arrumar emprego e as agressões seguem sendo de todos os tipos:

Caso você não saiba:

Eu sofro agressão quando riem do meu cabelo. Quando mostram insegurança ao me verem entrar num estabelecimento comercial.

Eu sofro agressão quando você se surpreende com o meu jaleco de doutora e quando você faz uma cara de espanto a me ver advogada.

Eu sofro agressão quando você diz que não aprova as cotas para negros em universidades. Quando o taxista passa por mim de madrugada aumentando a velocidade do carro, enquanto a viatura policial reduz e ainda abaixa o vidro.
Eu sofro quando estou passeando com minha família e, por engano, levo 80 tiros. Sem falar das abordagens vergonhosas quando perguntam como consegui o tênis e o celular.

Eu sofro quando pisam no meu pescoço por 8 minutos e 43 segundos resultando na minha morte por asfixia. Tudo para posar para um foto e me exibir com um troféu.

Na escola ensinaram-me que “O Dia da Abolição da Escravatura” é uma data comemorativa. “O dia do negro”.

Parem com isso!

Vamos falar a verdade e preparar nossas crianças e jovens para o mundo que realmente espera-os. Quem sabe daqui uns anos eles não tenham que dividir um texto em três partes dizendo praticamente a mesma coisa.