Pessoas de Direito sem direito – Elaine dos Santos

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Como professora universitária aposentada, dedico-me à revisão de linguagem em textos acadêmicos (monografias, dissertações, teses). Recentemente, li um artigo elaborado por um professor do curso de Direito de uma grande universidade. Ele refletia sobre o egoísmo que é próprio do ser humano e sobre uma premissa básica para a existência da lei: a lei existe para frear os desejos humanos, se não existisse lei, cada um tentaria satisfazer os seus desejos pessoais, o seu egoísmo.

Ele dividiu o seu texto em dois grandes grupos, de um lado, os homens de Direito, os homens comuns, todos nós que estamos submetidos às leis; de outro lado, os homens do Direitos, os operadores do Direitos: advogados, promotores, juízes. Antes, porém, de refletir sobre esses dois aspectos, o referido professor chamou a atenção para algo que está entranhado em nossa cultura, trata-se da ideia de uma superioridade inerente, própria de uma certa casta social, que, no caso discutido por ele, é representada pelos políticos que redigiram a Constituição Federal de 1988.

Todos nós sabemos – ou deveríamos saber – que homens brancos têm uma predominância sobre os demais indivíduos; eles exercem um “poder” simbólico, são machos em detrimento das mulheres que foram educadas para serem submissas; são brancos em detrimento de negros que foram alijados socialmente durante séculos. Em geral, por essas condições, esses homens brancos tiveram acesso à educação formal e, como tal, lograram melhores empregos e, como decorrência, melhor situação econômica.

Tomando o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, temos: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte”, como contraponto, pode-se apresentar a introdução da Carta Magna da África do Sul promulgada em 1996 e se observará: “Nós, o povo da África do Sul, reconhecemos as injustiças do nosso passado”. Assim posto, os constituintes sul-africanos não se consideram uma casta, um grupo ungido pelo poder supremo para elaborar as leis do seu país, mas parte do povo, ao contrário dos deputados e senadores brasileiros: aristocratas, donos de terras, industriais etc., entendendo-se “superiores” aos trabalhadores, aos homens e às mulheres que, diariamente, labutam com o suor do rosto para, no final do mês, obterem um salário mínimo incompatível com as suas necessidades.

Na mesma introdução dos textos, há uma discrepância relevante na concepção de Deus entre os constituintes dos dois países. Na Constituição brasileira, está escrito: “promulgamos, sob a proteção de Deus”, não há dúvida que Deus está presente no texto e que é avalista, que dá crédito ao texto. Não parece plausível para os constituintes brasileiros que Deus ousasse pôr em dúvida os propósitos colocados ali por esses constituintes. Na constituição da África do Sul, lê-se a humildade perante o sagrado: “Que Deus possa proteger o nosso povo.”

Por que eu trouxe essa reflexão? Porque me pareceu pertinente pensar se ela não está “escondida” nas ideias dos nossos políticos, aqueles com quem convivemos cotidianamente: será que eles também não se imaginam “ungidos” por Deus, acima do bem e do mal? Será que entronizados em cargos públicos, eles mantêm-se fiéis aos propósitos que enunciaram em suas campanhas ou o povo passa a ser uma massa amorfa, cuja vida é um ponto obtuso, um “caso” que eles não podem acudir num mar de preocupações? Ando muito preocupada com as pessoas que ocupam cargos públicos, mas ando muito mais preocupada com as pessoas que não têm voz ativa para defenderem-se daqueles que ocupam cargos públicos, pessoas de Direito, cujos direitos vêm sendo sonegados em um país que as esqueceu.

“A imagem que ilustra este texto é uma tela produzida pelo artista plástico restinguense Danrlei da Rosa, deficiente auditivo, ele é atendido pela APAE de Restinga Sêca. As telas estão à mostra na APAE daquela cidade”.

 

Profa. Dra. Elaine dos Santos

Revisora de textos acadêmicos/Palestrante

 


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