O outro, um grande desconhecido – Elaine dos Santos

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Reli, dias atrás, o conto “O outro”, de Rubem Fonseca, que está no livro “Feliz ano novo”. Rubem Fonseca, ex-policial, é conhecido pela narrativa marcada pela violência, pela exploração do submundo, do tráfico, dos assaltos, da marginalidade. Um dos seus contos clássicos é justamente “Feliz ano novo”, aquele em que Pereba, Zequinha e bando realizam um assalto para quebrar a monotonia da noite de Reveillon, impregnada de ostracismo e miséria. No conto, evidenciam-se as disparidades sociais, que colocam seres humanos em ângulos opostos, a tal ponto que lhes é possível praticar uma cena que lembra o canibalismo: quase ao final do assalto, decidido a levar o anel de uma mulher morta, um dos rapazes corta-lhe o dedo com os dentes, apenas para obter a jóia.

“O outro” é o oitavo conto que integra a coletânea lançada e proibida pela censura em 1975, relançada em 1994, com o aplauso da crítica. Tem-se um narrador em primeira pessoa – o que nos obriga a “acreditar” naquilo que ele afirma. Trata-se de um empresário, ao que parece solitário, que mergulha no trabalho, sem hora para alimentar-se, dormir ou dedicar-se ao lazer, até que é “desperto” por uma taquicardia, procura o médico e é aconselhado a mudar de vida. Nesse meio tempo, surge um homem em seu caminho, que passa a importuná-lo, é um mendigo que pede ajuda, que solicita dinheiro porque a mãe está doente, que retorna e requer nova soma em dinheiro porque a mãe faleceu. Cada vez mais, a presença desse homem parece mais opressora, ele “cresce” fisicamente, o seu porte físico parece ameaçador: homem branco, forte, rosto cínico e vingativo – “ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador”.

Enlouquecido com a presença do intruso, o empresário resolve afastar-se das atividades profissionais, procura um espaço de reclusão, mas é descoberto pelo estranho. Pressionado, angustiado, cansado, ele toma uma decisão que será definitiva, sob os gritos de piedade do pedinte, atira. “Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder”.

Quantas vezes, os nossos fantasmas interiores criaram barreiras que nos impedem de partilhar sentimentos, ideias com os outros, tão solitários quanto nós? Quantas vezes, a solidão tornou-se o nosso espaço preferencial para evitar o embate com o outro, com a diversidade que ele representa? Por outro lado, tenho uma desconfiança: o outro tem se tornado mais avesso à nossa convivência, porque ele também, ensimesmado, sob o invólucro das suas verdades, é incapaz de um gesto de aproximação… E, assim ficamos presidiários de casas com videomonitoramento, alarme, cerca elétrica, companheiros de smartphones, computadores, conversando alegremente com cães e gatos, preparando festas de aniversários para animais irracionais. Vamos de mal a pior…

 

 

Professora Elaine dos Santos

Doutora em Letras

Contato: e.kilian@gmail.com