Francisco Melgareco Benine – Carta aberta de um ex-racista

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*Texto e personagens fictícios

Eu devia estar feliz, pois hoje faz exatamente sete dias que voltei pra casa. Tive leucemia aguda, foram seis meses internado entre a vida e a morte.  Tive também a felicidade de, através de um transplante de medula, receber a benção de sobreviver e poder contar minha história. Mas hoje preciso me questionar.

No Brasil hoje, a probabilidade de se encontrar um doador compatível é de uma chance a cada cem mil. Tenho dois irmãos e nenhum deles preencheu os requisitos, assim como nenhum de meus familiares. Posso dizer que foi como acertar na loteria e ganhar uma vida nova como prêmio. Mas hoje preciso muito me questionar.

Talvez eu devesse estar planejando os próximos passos de minha sobrevida. Sentar no parque de tardezinha e sentir o vento bater no meu rosto enquanto leio o jornal do dia. Devia estar fazendo valer cada segundo de minha vida na plenitude dos meus quarenta e poucos anos.

Era pra eu estar preocupado com o aumento dos impostos, com a corrupção absurda do meu país. Talvez eu devesse participar do protesto contra a falta de segurança da minha cidade, ou então buscar uma resposta para todas as minhas dúvidas sobre o que é mais importante em minha vida.

Eu deveria me perguntar que tipo de pessoa os outros consideram que eu sou, procurar uma forma de ser alguém o qual as pessoas sentem falta. Projetar o meu futuro e garantir que tudo que aprendi no passado possa me servir ali na frente.

Era também para eu estar construindo o legado o qual eu vou deixar quando partir. Escrever uma canção, um texto que possa inspirar pessoas ou estender a mão para alguém necessitado deixando um bom exemplo do ser humano o qual eu deveria ser.

Mas hoje eu estou aqui, tão cansado e questionando a minha própria razão de existência. Tenho sido tão egoísta ao ponto de não poder ver o quanto tenho de coisas boas ao meu redor que agora me pergunto: Eu mereço?

Preciso admitir. Eu era racista.

Sou tão bom em julgar pessoas e julguei a mim mesmo como uma pessoa melhor por ter uma cor de pele mais clara que alguns. Fui tão pequeno e desprezível ao sentar longe de uma pessoa afrodescendentes quando estava no metrô após o trabalho. Mas muitas vezes a vida trata de tombar o nosso ego, como um Boeing desgovernado que adentra e derruba as torres gêmeas de nossa ignorância.

Eu sempre levei em consideração a cor das pessoas, como se fosse a credencial para que pudesse ser digno de minha confiança. Fui preconceituoso e agora estou aqui arrependido.

Peço perdão.

Hoje conheci o homem que doou a mim a medula. Alguém para o qual eu devo cada segundo de existência daqui pra frente, que tem o mapa genético semelhante ao meu, e é claro, tem o sangue da mesma cor que o meu.Uma dívida que nunca poderei pagar, mas que sempre me trará a certeza de que até o fim dos meus dias eu serei uma pessoa melhor.

Hoje faz exatamente sete dias que voltei pra casa. Tive leucemia aguda, foram seis meses internado entre a vida e a morte.  Tive também a felicidade de, através de um transplante de medula, receber a benção de sobreviver e poder contar minha história. Hoje conheci o homem que doou a mim a medula. Ele é negro.