Auceri Becker Martins

Crônica de um Guri de São Sepé
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Do Livro IAM BECKER

Crônica escrita no TIMOR LESTE em 2009

Major-BeckerEu era gurizote criado solto nas ruas da capital, mas tinha verdadeira predileção por passar as férias de verão em São Sepé ou São Gabriel, no interior gaúcho, pois lá sim a vida era sossegada e cada dia demorava dois a passar. Naquela pacata São Gabriel dos anos setenta, todos conheciam e admiravam o senhor sepeense de bigode avolumado, bem aparado à tesoura e com as pontas torcidas pra cima, dono da bodega mais popular da rua Jonathas Abbott. Seu João Becker, meu avô, foi um dos comerciantes mais tradicionais da região do planalto médio. Ele tinha uma bodega sortida com todo tipo de produto que me parecia, em meu imaginário da época, um Carrefour interminável e fonte de inesgotáveis descobertas.

Além do calor humano oferecido no balcão, Seu João era o pai de muitas das sacadas geniais do varejo atual, pois atuava em um local onde se vendia quase de tudo e onde comunicação era a moeda fundamental. Penso que a bodega foi a gênese das lojas de departamentos e o mais primitivo DNA dos hipermercados.

Sem jamais ter estudado de fato, meu avô era negociante ávido e jamais soube que suas maneiras às costas do balcão, um dia seriam estudadas como ciência em bancos acadêmicos. Seu bolicho já usava a venda do pão como estratégia para aumentar o giro da mortadela, deixada exposta estrategicamente ao lado do cesto de pães “cabrito”. As bebidas alcoólicas, os tradicionais “tragos”, que todos degustavam, ao término de cada dia, eram cuidadosamente misturadas a outras, como complementos de sabor, ao gosto do freguês.

Seu João Becker sabia como ninguém fazer com que o amigo que chegasse ali buscando um parafuso de cabo de serrote saísse com a sacolinha cheia, mesmo que não pudesse pagar na hora, deixava tudo anotado na sua página da “caderneta do fiado” e, nisso percebo que estratégias de marketing pautadas no comportamento do consumidor não têm nada de tão modernas.

Intimamente, eu viajava naquele universo de marcas e embalagens, a ponto de saber de quase todas e que produtos cada cliente costumava buscar. Era uma escola de convivência, respeito e cordialidade como inexiste em nossos dias e lá, sem jamais ter noção do que estava aprendendo, fui educado a ter a paciência necessária para alcançar a venda pretendida.

O Bolicho era um ponto de referência da vizinhança que se acercava do sorriso hospitaleiro de seu João e dona Glorinha, recebendo um cumprimento honesto e um olhar sincero, antes de sentarem um pouco, a cada entardecer, para tomar um chimarrão e falar amenidades, sempre levando uma coisinha ou outra que havia esquecido durante o dia.

Eu conheci coisas, naquele bolicho, que hoje nem se ouve mais falar, como fumo em rolo, cachaça 3 fazendas, arroz pilado e tirado das tulhas (grandes caixas de madeira com tampas), “Boa Noite” (espirais para espantar mosquitos), cebolas em réstia, papel pega mosca, martelinho com bitter (vermute), a velha concha de kilo (medida exata para cereais, sal e açúcar), a honesta balança de dois pratos, o pão “bengala”, o querosene para lampiões, o delicioso “sorvete seco”, a camisinha de lampião a gás (liquinho), balas Azedinha, Cirilinha (refrigerante gaúcho), o papel almaço para embrulho, os cigarros Finesse, Sudan 85 e Continental (sem filtro) e uma espécie de mostruário de vidro giratório, com vários tipos de balas e rapadurinhas, que em cada boca do expositor se usavam tampas coloridas e de onde eu sempre furtava os pirulitos de açúcar queimado… Cara, eu adorava aquilo!

Existiam as iguarias compradas das confeiteiras locais como “orelha de macaco”, uma espécie de doce frito e caramelado e os famosos “mil folhas”, que passavam mil dias pra serem vendidos (hahahah).

Meu avô me ditava os preços que eu anotava em uma lista particular, como meu dever de casa. Nada constava em etiquetas e era o bolicheiro ou seu aprendiz, quem informava o preço de item por item dos secos e molhados, panos de loja, remédios, confeitos, cereais e do trago com ou sem mistura… Enfim, nada mais cúmplice e pessoal, sempre intermediado pelo chimarrão que corria em volta, como símbolo da hospitalidade.

As férias corriam lentas e o bolicho do seu João não fechava nem aos domingos, pois era nos finais de semana que sua freguesia mais entusiasmada se fazia presente. Quando a peonada, de folga das lides dos quartéis, lojas e estâncias, se reunia, sempre respeitosamente, para tomar seu traguinho e escutar as muitas histórias daquele bolicheiro que já tivera sido peão de renome nas cercanias de São Sepé, Catuçaba e Bagé.

Meu avô conhecia um por um dos seus fregueses e costumava ocupar-se em discutir os problemas com quem lhe pedisse conselho e opinião desinteressada, enquanto minha vó Glorinha fazia o acompanhamento sempre com sorriso fácil e alguma guloseima. Nesse meio tempo, eu e minha irmã, ignorávamos sermos felizes e nos entretínhamos até a hora da novela da TV, em memoráveis disputas de “Cinco Marias” com os primos e vizinhos.

Assim o tempo, que não mais volta, se fez passar. O mundo cobrou nossa independência, roubou nossa inocência, exigiu nossa separação e nos apartou desses dias tão puros. Hoje, não mais sei por onde andam meus fregueses, meus amigos e nem mesmo os produtos cujos preços eu decorava… Os dias de homem crescido, levaram meus avós para a capital e lá, privados do que entendiam ter significado, se perderam nos fundos de nossa casa em papéis secundários, distantes de seus sonhos… Os netos cresceram, minha querida avó faleceu após alguns anos de enfermidade e meu saudoso avô, João Becker, foi definhando à míngua, de sua amada, até que poucos anos mais tarde, sem avisar os de casa, o velho bodegueiro escutou o chamado de sua prenda, retirou o lápis de trás da orelha, baixou as portas da nossa bodega e dormiu.